três discursos para deixar em 2021

se você transita por perfis de organização e produtividade no instagram, você já se deparou com frases do tipo trabalhe enquanto eles dormem. se você transita por perfis mais críticos de organização e produtividade, você já deve ter visto muita problematização sobre este tipo de frase. afinal, ela reforça competitividade e reproduz algumas ideias. algumas delas são:

  • o sucesso financeiro é proporcional a quantidade de horas trabalhadas;
  • você está em competição constante e, neste jogo, vence quem mais se esforça – mesmo que isso signifique negar necessidades básicas;
  • dormir é opcional e sinal de fraqueza.

já sabemos que não concordamos com este discurso competitivo. já reconhecemos o efeito que ele tem em nós e as relações que ele reproduz. mas, ao que me parece, ainda temos um longo caminho a percorrer para reconhecer e abandonar outros discursos tão perversos quanto o discurso da competição.

para ilustrar, vou tomar como exemplo o descanso. afinal, não a toa, muitas das frases típicas do mundo da organização e da produtividade giram em torno de dormir e se divertir. descansar e ter momentos de lazer.

“você não precisa dormir”

frases desse tipo podem ser complementadas: você não precisa dormir x horas para que seu cérebro descanse (como se seu cérebro e você fossem sinônimos), ou você não precisa tirar todo o final de semana para descansar. geralmente, ainda, vem cheias de comparação: tal empresário de sucesso dorme apenas tantas horas, fulano famoso pratica o sono fásico, pessoa-muito-pobre-que-ascendeu-socialmente só descansa no domingo à noite quando vai à igreja.

chamo este discurso de discurso da desumanidade.

além de reforçar comparações rasas e injustas, este discurso retira a autonomia do indivíduo, que passa a negar os sinais do seu corpo para confiar em sinais externos arbitrários. ele fragmenta corpo e mente e reproduz a ideia de que a mudança de mentalidade pode controlar o corpo – inclusive, suas necessidades básicas.

este discurso reproduz a ideia de que somos máquinas.

(e responder dizendo que máquinas precisam de manutenção e, por isso, nós precisamos descansar, é também reforçá-lo, ok?)

o discurso da desumanidade reforça a ideologia neoliberal na medida em que responsabiliza o indivíduo por seu sucesso (aqui entendido como consequência única da sua produtividade, que seria obtida pela negação do corpo).

“você é mais produtiva quando está descansada”

é verdade? é. então, qual é o problema?

o problema é que seguimos atrelando nossos momentos de descanso e lazer à produtividade no trabalho. então, seguimos pensando em trabalho até fora dele. afinal, seria por ele o nosso descanso.

este seria o discurso do utilitarismo: dormimos, descansamos ou temos momentos de lazer porque eles são úteis para o nosso desempenho no trabalho.

reproduzimos a ideia desumana de que dormir não é uma necessidade básica. reproduzimos a ideia de que descansar não pode ser um desejo. e, assim, reforçamos as noções competitivas de que dormem e descansam aqueles que são fracos.

a verdade é que descansar é uma necessidade. e não precisamos de motivo para ter momentos de lazer. por mais que uma rotina equilibrada aumente a produtividade, não é por isso que dormimos ou descansamos.

“você merece dormir”

se dormir é uma necessidade básica, é preciso merecer? se está lógica está correta, quando você sente que sua bexiga está cheia, você precisaria merecer ir ao banheiro também?

qual é a métrica para merecer momentos de lazer? quem decide se você mereceu ou não?

estas frases são as campeãs da minha timeline. estão em diversas postagens compartilhadas por perfis que se entendem progressistas, mas reforçam e reproduzem o discurso da meritocracia – também muito criticado por estas mesmas contas.

falas deste tipo são perigosas porque reforçam o descolamento entre corpo e mente – como se fosse possível dizer ao corpo: ei, nada de sono agora, eu ainda não mereço dormir. sabemos que não é assim que funcionamos.

se sabemos que a meritocracia na sociedade é uma ilusão, entendemos que é falsa a relação entre o quanto uma pessoa desfruta de momentos de lazer e seu merecimento. então, por que atrelamos uma coisa a outra?

se você não se permite descansar, o caminho não é entender que você merece. o caminho é entender porque você precisa se permitir descansar e como achar que você mereceu te ajuda no processo. não é um trabalho para uma professora de organização, mas para uma psicanalista.


não se trata de trocar palavras. mas de pensar sobre o que reproduzimos e reforçamos (na sociedade e nos sujeitos) quando repetimos frases prontas.

por mais que estas frases façam sentido na sociedade em que vivemos, precisamos nos perguntar: por que isto faz sentido? e até que ponto?

palavras têm história e produzem efeitos – em nós e no mundo.

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