não há autonomia na culpa

acabei de estudar o livro pedagogia da autonomia, de paulo freire. essa deve ser talvez a terceira ou quarta vez que leio o livro todinho, mas é a primeira que faço um estudo metódico dele. como é bom estudar de fato! e como é gostoso revisitar um livro e rever seus conceitos e ter novas percepções, que antes não poderiam ser.

o livro é organizado de tal forma que o autor explica os critérios para se ensinar – e, portanto, ser professor de qualquer coisa que seja. todo tópico é intitulado assim: ensinar exige x. e, ao longo dos capítulos, vamos descobrindo juntos o que nos torna bons professores.

uma passagem em particular me chamou bastante atenção: paulo freire diz que, para aprender, precisamos conhecer a razão de ser das nossas dificuldades. precisamos estar conscientes: não basta conhecer os obstáculos, mas fazê-lo de forma crítica.

nesta parte do texto, ao explorar o inacabamento próprio ao ser humano, o autor condena o fatalismo – que falsamente nos faz acreditar seres conclusos, que tal qual o mundo não poderia ser modificado.

isto me fez refletir bastante sobre o processo de aprender a se organizar.

algumas pessoas pensam serem incapazes a ponto de nem sequer tentar. não há curiosidade do que poderia ser a vida se a cabeça estivesse menos ocupada guardando informações e mais livre para criar e inventar e se divertir. a estas pessoas, desejo, antes de tudo: coragem para imaginar.

mas eu me preocupo mesmo é com outro grupo: o das pessoas que imaginam e tentam, mas não conseguem e, por isso, se acham incapazes. estas pessoas buscam maneiras de se organizar e esbarram em fórmulas prontas que responsabilizam o sujeito sem dar a possibilidade de este sujeito exercer autonomia sobre o processo.

responsabilidade sem liberdade não pode ser autonomia. por isso, as fórmulas prontas são culpabilizadoras: elas precisam ser seguidas a risca, caso contrário, não funcionarão.

o problema é que ninguém segue nada a risca. cada um tem uma vida, uma história, uma personalidade… contar com fórmulas prontas significa ignorar tudo isso e contar com uma fonte de energia nada confiável: sua motivação. este combustível se esgota muito rápido. o que acontece, então, é que a fórmula deixa de ser seguida e não há alternativas: há a fórmula e o que não é fórmula. por isso, o indivíduo não consegue criar um caminho próprio.

chega, então, a culpa: a fórmula funciona, basta você seguir. se você não conseguiu, você é incapaz. já tá mais do que na hora de jogar isso pela janela: quanto mais buscamos soluções desse tipo, menos autonomia desenvolvemos, mais alimentamos a nossa culpa e mais abalada fica nossa autoconfiança.

quanto mais assumimos essa culpa, mais acreditamos que somos incapazes de mudar. e a mudança é a única certeza que temos nessa vida. aprender é mudar também.

liberdade, no processo de aprendizagem da organização pessoal, significa compreender o que você está fazendo e quais são suas escolhas. você tem a oportunidade de experimentar e escolher de forma embasada, compreendendo os caminhos possíveis e suas consequências – e assumindo os efeitos de fazer algo de um jeito e não de outro. e mudando quando necessário ou desejado. isso envolve a escolha das ferramentas, o suporte no qual elas vão ganhar vida, o que cada uma significa, qual hábito deve ser desenvolvido primeiro etc.

liberdade para escolher significa aprender a fazer escolhas, e poder assumir responsabilidade acerca de cada decisão. significa, inclusive, entender até que ponto vão suas escolhas – e o quanto o sistema no qual vivemos limita nossas escolhas ou, pelo menos, participa delas.

é assim que desenvolvemos autonomia: com liberdade e responsabilidade.

quando estamos presas a culpa, não nos sentimos capazes de aprender. temos a nossa autoconfiança tão abalada que abdicamos da nossa liberdade, como se fossemos incapaz de fazer boas escolhas. Assim, abrimos também mão da nossa responsabilidade – afinal, a nossa única responsabilidade foi escolher qual sistema de regras arbitrárias seguir – e aprofundamos nossa culpa, por nos sentirmos incapazes de seguir um conjunto de regras (o que soa simples, mas é extremamente opressor).

o único jeito da gente aprender a se organizar é com autonomia.

o único jeito de desenvolver autonomia é encarar a culpa e compreender criticamente os motivos pelos quais suas tentativas anteriores de se organizar não funcionaram – assumindo a sua responsabilidade quando ela te couber, mas, principalmente, compreendendo os aspectos técnicos e conceituais do que foi feito anteriormente.

bom dia e bora aprender ⚡

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