este texto é escrito na quarta-feira de cinzas. chove. já não há mais a pressão carnavalística para curtição ou relaxamento. no ar, paira um sentimento que mistura relutância e aceitação: entre hoje e amanhã, o ano definitivamente se inicia.
durante os últimos dias, pensei bastante sobre o descanso. estamos certas de sua importância, mas sinto que nem sempre convergimos acerca do que chamamos descanso.
há muito a falar sobre este assunto – sobre a possibilidade real do descanso para autônomas ou a maioria das pessoas na sociedade em que vivemos, ou a relação entre o descanso e o que compreendemos por produtividade, ou a perspectiva utilitarista do descanso, ou, ainda, sobre quais atividades constituem um descanso genuíno.
hoje, quero apenas compartilhar um insight: acho que descansar tem a ver com perder tempo.
ontem, eu perdi muito tempo. a giovana, minha vizinha, passou aqui em casa por volta das seis da manhã. recentemente, descobrimos que nossos horários são super parecidos – então, depois de passar na horta para buscar couve, manjericão e hortelã, ela decide passar aqui para bater papo. enquanto eu terminava meu café da manhã e lavava a louça, gi e eu papeamos bastante! já eram quase oito horas quando subi para tomar banho – o que faço geralmente entre seis e sete da manhã.
depois do banho, vou cuidar do gatinho de outra vizinha – também chamada giovana. decidi deixar o gatinho sair um pouco: para pegar sol e brincar na grama. perdi tempo brincando com ele do lado de fora.
fiz almoço e exagerei na quantidade de comida. o que é bom, por um lado – significa não ter que decidir o que comer pelos próximos dias. almocei e dormi. perdi bastante tempo neste cochilo, talvez umas duas horas.
ao acordar, decidi fazer um bolo de chocolate vegano. e fiz. estou sozinha em casa – o homem está viajando. vou ter que dar um pouco do bolo de presente para alguém. não tinha motivo para fazer o bolo – mesmo assim, eu fiz. perdi tempo.
também estudei mandarim. e foi nessa hora que me dei conta da enormidade do tempo perdido. já havia treinado os ideogramas da primeira aula, mas decidi escrevê-los em outro lugar para sistematizar o aprendizado de gramática e vocabulário. então, decidi também sistematizar os ideogramas aprendidos no aplicativo drops – dois verbos e alguns substantivos. estes ideogramas não foram praticados ainda (leia-se: escritos à exaustão), e talvez não o sejam tão cedo. mas eu quis registrá-los, ali, no que agora chamo meu caderno de mandarim. não bastasse o registro dos ideogramas, escrevi a pronúncia de cada um em pinyin e zhuyin.
não preciso dizer que este processo demorou bastante. uma tarde inteira! quando me dei conta, me perguntei: será que não estou perdendo tempo? foi então que cheguei a conclusão que: sim. provavelmente, a forma mais eficiente de estudar seria seguir para a aula seguinte – e treinar apenas os ideogramas solicitados pela professora. mas, se este estudo é um hobbie: por que ele deve ser eficiente? para que trazer uma lógica utilitarista para o processo?
eu genuinamente me diverti escrevendo os ideogramas. eu gostei de desvendar por conta própria o zhuyin de palavras como 水果, cuja escrita em pinyin não apresenta equivalência letra-a-letra para o zhuyin. pensei: deve haver uma maneira mais fácil de fazer isso. mas, para que buscá-la se está prazeroso estudar assim?
descansar, então, talvez tenha esta característica: a de perder tempo. de fazer as coisas porque sim. de não se preocupar com o tempo, a eficiência ou os deveres. é tomar um chá de surpresa e não ter hora para ir embora, é estudar algo que você quer aprender, é sujar a cozinha fazendo um bolo que você nem vai comer, ou dormir no sofá até que seu corpo diga: vamos acordar. descansar, para mim, é ter dias desplanejados.
essa reflexão me ajudou a reforçar algo que já tenho pensado sobre s produtividade: que ela deve se manter no âmbito do trabalho. para perder tempo, precisamos ganhar tempo. e ganhamos tempo quando conseguimos ser produtivas nos momentos que precisamos ser.
por isso, acredito tanto na força da organização pessoal. por mais que eu seja crítica acerca da sobrecarga dos sujeitos – assunto que não será abordado nesse texto – não posso negar que hoje cabe aos indivíduos ganhar tempo. não podemos esperar isso de ninguém.
é a organização pessoal que nos ajuda a ganhar tempo – só para depois perdê-lo, do jeito que a gente quiser.